# 18 Lei da Negação da morte – 18/18 Robert Greene
A
maior parte das pessoas passa a vida a evitar o pensamento da morte. Em vez
disso, a inevitabilidade da morte deveria estar sempre na nossa mente.
Compreender a brevidade da vida enche-nos de uma noção de propósito e de
urgência no sentido de realizarmos as nossas metas. Treinarmo-nos para
enfrentar e aceitar esta realidade torna mais fácil lidar com os inevitáveis
impasses, separações e crises na vida. Dá-nos uma noção de proporção, do que
realmente importa nesta breve existência. A maior parte das pessoas procura
constantemente novas formas de se distinguir dos outros e de se sentir
superior. Em vez disso, devemos ver a mortalidade em cada um de nós, na forma
como nos nivela e liga a todos. Ao tornarmo-nos profundamente conscientes da
nossa mortalidade, intensificamos a experiência de todos os aspetos da vida.
Interpretação história Flannery O´Connor: Nos anos que se seguiram aos
primeiros sintomas de lúpus, Flannery O'Connor reparou num fenómeno particular:
nas suas interações com amigos, visitantes e correspondentes, descobria-se
muitas vezes a representar o papel do conselheiro, a dar às pessoas orientação
sobre como deviam viver, onde investir as suas energias, como permanecer calmos
perante as adversidades e viver com um sentido de propósito. Ao mesmo tempo,
era ela quem estava efetivamente a morrer e a lidar com várias limitações
físicas graves.
Sentia
que um número crescente de pessoas neste mundo se perdera. Não se conseguiam
comprometer de corpo e alma com o trabalho ou com relacionamentos. Passavam o
tempo inteiro a interessar-se por isto ou por aquilo, procurando novos prazeres
e distrações, mas sentindo-se bastante vazios por dentro. Tendiam a desmoronar
perante a adversidade ou perante a solidão e recorriam a ela como alguém
sólido, que seria capaz de lhes dizer a verdade acerca de si próprios e de
orientar em algum sentido.
Na
sua perspectiva, a diferença entre ela própria e essas pessoas era simples:
Flannery passara ano após ano a olhar diretamente para a morte sem hesitar. Não
caía em esperanças vagas quanto ao futuro, não depositava as suas esperanças na
medicina ou afogava as mágoas em álcool ou outro tipo de dependência. Aceitava
a condenação a uma morte precoce que lhe fora imposta, usando-a para os seus
próprios objetivos.
Para
Flannery, a proximidade da morte apelava-a a passar à ação, a experimentar uma
sensação de urgência, a aprofundar a sua fé religiosa e a desencadear a sua
impressão de espanto perante todos os mistérios e incertezas da vida. Usava a
proximidade da morte para aprender o que realmente importava e para a ajudar a
manter-se afastada das questiúnculas e preocupações mesquinhas que atormentavam
as outras pessoas. Usava-a para se ancorar ao presente, para a fazer apreciar
cada momento e cada encontro.
Sabendo
que a sua doença tinha um propósito, não era preciso cair na autocomiseração.
E, ao confrontá-la e lidar com ela diretamente, podia endurecer, gerir a dor
que lhe massacrava o corpo e continuar a escrever. Quando recebeu outra bala, a
separação de Erik, conseguiu recuperar o equilíbrio passados alguns meses, sem
se tornar amarga ou se isolar.
O
que isto significava era que estava perfeitamente à vontade com a derradeira
realidade representada pela morte. Por oposição, muitas outras pessoas,
incluindo as que conhecia, sofriam de um défice de realidade, evitando o
pensamento da sua mortalidade e os outros aspetos desagradáveis da vida.
Concentrar-se
tão profundamente na sua mortalidade incluía mais uma importante vantagem -
aprofundava a sua empatia e noção de ligação com os outros. Tinha uma relação
especial com a morte, de modo geral: esta não representava um destino que lhe
fosse reservado apenas a ela, mas que também estava intimamente ligado ao pai.
O sofrimento e a morte de ambos estavam interligados. Via na sua própria
proximidade da morte um estímulo para levar este aspeto mais longe, verificando
que todos estamos ligados através da nossa realidade comum e nos tornamos
iguais através dela. É o destino que todos partilhamos e que nos deveria
aproximar ainda mais por esse motivo. Deveria desviar-nos da ideia de sermos
superiores ou diferentes.
A
empatia e o sentido de união de Flannery com os outros, características
aumentadas no seu caso, como evidenciado pelo seu forte desejo de comunicar com
todo o tipo de pessoas, levaram-na a acabar por se libertar de uma das suas
maiores limitações: os sentimentos racistas face aos afro-americanos que
interiorizara da mãe e de muitas outras pessoas do Sul. Via-o claramente em si
e lutava contra esse sentimento, especialmente no trabalho. No início dos anos
sessenta, chegou a aderir ao movimento dos direitos civis liderados por Martin
Luther King Jr. E, nas suas últimas histórias, começou a expressar uma visão de
que todas as raças na América convergiriam um dia, como iguais, ultrapassando a
mancha negra no passado desse país.
Durante
mais de treze anos, Flannery O'Connor olhou para a arma que lhe era apontada,
recusando-se a afastar o olhar. Decerto que a sua fé religiosa a ajudou a
manter a coragem, mas, como a própria Flannery percebia, muitas pessoas
religiosas estão igualmente cheias de ilusões e de evasões quando se trata da
sua própria mortalidade e são tão capazes de conformismo e mesquinhez como
qualquer outro ser humano. Foi sua opção individual usar a doença mortal de que
sofria como forma de viver uma vida o mais intensa e preenchida possível.
Compreender: Tendemos a
ouvir histórias como a de Flannery O'Connor com algum distanciamento. Não
conseguimos evitar sentir algum alívio por nos encontrarmos numa posição muito
mais confortável. Mas cometemos um grave erro ao fazê-lo. O destino de Flannery
é o nosso destino — todos estamos a morrer, todos enfrentamos as mesmas
incertezas. De facto, ao manter a sua mortalidade tão presente e palpável,
ganhou uma vantagem sobre nós — foi obrigada a enfrentar o fim da vida e a usar
a sua consciência do mesmo.
Por
outro lado, somos capazes de contornar esse pensamento, de visionar
intermináveis horizontes do tempo que temos diante de nós e de caminhar
desinteressadamente pela vida. E então, quando a realidade nos atinge, quando
recebemos talvez a nossa própria bala perdida sob a forma de uma crise
inesperada a nível profissional, de uma separação dolorosa, da morte de alguém
próximo ou mesmo de uma doença que nos ponha a vida em risco, normalmente não
estamos preparamos para lidar com o facto.
Evitar
o pensamento da morte definiu um padrão na forma como lidamos com outras
realidades desagradáveis e com a adversidade. Ficamos histéricos rapidamente e
perdemos o equilíbrio, culpando os outros pelo nosso destino, sentindo-nos
zangados e com pena de nós próprios, ou optamos por distrações e formas rápidas
de entorpecer a dor. Torna-se um hábito que não podemos afastar, e tendemos a
sentir a ansiedade e o vazio generalizados que decorrem de todo este
evitamento.
Antes
que se torne um padrão para a vida, devemos procurar sair deste estado
sonâmbulo de uma forma real e duradoura. Devemos olhar para a nossa própria
mortalidade sem hesitar e sem nos enganarmos com uma meditação fugaz e abstrata
sobre a morte. Temos de nos concentrar bastante na incerteza que a morte
representa - pode ocorrer amanhã, como outra adversidade ou separação. Temos de
parar de adiar a consciência. Temos de parar de nos sentir superiores e
especiais, vendo que a morte é um destino partilhado por todos e que deveria
ligar-nos de uma forma profundamente empática. Todos fazemos parte da
fraternidade e da irmandade da morte.
Ao
fazê-lo, definimos um rumo muito diferente para as nossas vidas. Ao tornarmos a
morte uma presença familiar, compreendemos quão breve é a vida e o que
realmente nos deveria importar. Experimentamos uma sensação de urgência e um
compromisso mais profundo com o trabalho e com os relacionamentos. Quando
enfrentamos uma crise, separação ou doença, não nos sentimos tão aterrados e
assoberbados. Não sentimos a necessidade de entrar em modo de evitamento.
Podemos aceitar que a vida envolve dor e sofrimento e usar esses momentos para
nos fortalecer e aprender. E, como no caso de Flannery, a consciência da nossa mortalidade
limpa-nos de ilusões tolas e intensifica cada aspeto da nossa experiência.
Quando
olho para o passado e penso em todo o tempo que desperdicei em erros e
ociosidade, carecendo do conhecimento necessário para viver, quando penso
quantas vezes pequei contra o meu coração e a minha alma, o meu coração sangra.
A vida é uma dádiva, a vida é alegria, cada minuto poderia ter sido uma
eternidade de alegria! Se os jovens soubessem! Agora a minha vida irá mudar;
agora renascerei. Querido irmão, juro que não perderei esperança. Manterei a
minha alma pura e o meu coração aberto. Renascerei para melhor.
—Fiódor
Dostoiévski
Explicações
para a natureza humana
Se
pudéssemos recuar e analisar de alguma forma a sucessão dos pensamentos
diários, iríamos aperceber-nos de que tendem a girar em torno das mesmas
ansiedades, fantasias e ressentimentos, como um círculo contínuo. Mesmo quando
damos um passeio ou temos uma conversa com alguém, geralmente permanecemos
ligados a este monólogo interior, escutando e atentando apenas pela metade
naquilo que vemos ou ouvimos.
No
entanto, de vez em quando, alguns acontecimentos podem desencadear um tipo
diferente de pensamento e sentimento. Digamos que vamos de viagem para um local
no estrangeiro que visitámos, fora da nossa zona de conforto habitual.
Subitamente, os nossos sentidos ganham vida, e algo que vemos e ouvimos parece
um pouco mais vibrante. Para evitar problemas ou situações perigosas neste
local desconhecido, temos de prestar atenção.
Do
mesmo modo, se estivermos prestes a ir de viagem e tivermos de nos despedir das
pessoas que amamos, que podemos não voltar a ver por uns tempos, poderemos
subitamente vê-las sob uma luz diferente. Normalmente damos estas pessoas como
garantidas, mas agora olhamos para as expressões particulares dos seus rostos e
ouvimos o que têm a dizer. A sensação de separação iminente deixa-nos ainda
mais emotivos e atentos. Uma versão mais intensa irá ocorrer se um ser amado -
um familiar ou irmão - morrer. Esta pessoa desempenhou um papel importante nas
nossas vidas; interiorizámo-la e de alguma forma perdemos uma parte de nós. Ao
lidar com a situação, a sombra da nossa própria mortalidade cai sobre nós por
um instante. Tomamos consciência da permanência desta perda e lamentamos não
ter gozado mais a existência dessa pessoa. Podemos até sentir alguma raiva pelo
facto de a vida simplesmente continuar para os outros, pelo facto de se
abstraírem da realidade da morte que subitamente nos atingiu.
Durante
vários dias ou talvez semanas depois desta perda, tendemos a sentir a vida de
forma diferente. As nossas emoções são mais cruas e mais sensíveis. Estímulos
específicos recuperam associações com a pessoa que morreu. Esta intensidade
emocional irá esbater-se, mas, sempre que nos lembrarmos do indivíduo falecido,
uma pequena parte dessa intensidade regressará.
Se
considerarmos a morte como o transpor de um limiar que de modo geral nos deixa
aterrados, as experiências enumeradas são sugestões da nossa própria morte em
doses reduzidas. Afastados das pessoas que conhecemos, viajando por uma terra
estranha, entrando claramente numa nova fase da vida, tudo envolve mudanças que
nos fazem olhar para o passado como uma parte de nós que morreu. Nesses
momentos, e perante as formas mais intensas de dor face a essas mortes
efetivas, notamos um intensificar dos sentidos e um aprofundar das emoções.
Surgem-nos pensamentos de tipo diferente. Ficamos mais atentos. Podemos dizer
que a nossa experiência de vida se torna qualitativamente diferente e emotiva,
como se temporariamente nos tornássemos outros. Claro que esta alteração de
pensamentos, sentimentos e sentidos será mais forte se sobrevivermos a um
encontro breve com a morte. Nada parece ser o mesmo depois de tal experiência.
Chamemos-lhe efeito paradoxal da
morte estes momentos e encontros têm como resultado fazer-nos sentir mais
despertos e vivos. Podemos explicar o efeito paradoxal da seguinte forma.
Para os seres humanos, a morte é
uma fonte não só de medo, mas também de estranheza. Somos o único animal
verdadeiramente consciente da nossa mortalidade iminente. De modo geral,
devemos o poder que detemos como espécie à nossa capacidade de pensar e de
refletir. Mas, neste caso particular, a nossa forma de pensar só nos traz
sofrimento. Nada mais vemos além da dor que a morte envolve, a separação dos
seres amados e a incerteza quanto ao momento em que poderá ocorrer. Fazemos o
que podemos para evitar esse pensamento, para nos distrair dessa realidade, mas
a consciência da morte fica gravada bem no fundo da mente e nunca pode ser
completamente afastada.
Sentindo o impulso inconsciente de
abrandar de alguma forma o impacto dessa consciência, os nossos antepassados
criaram um mundo de espíritos, deuses e algumas ideias sobre a vida depois da
morte. A crença nessa existência ajudava-os a mitigar o medo da morte e até
lhes trazia alguns aspetos apelativos. Não conseguia eliminar a ansiedade de se
separarem dos entes queridos ou de diminuir a dor física envolvida, mas
oferecia uma compensação psicológica profunda pelas ansiedades que
aparentemente não é possível afastar. Este efeito era reforçado por todos os
rituais elaborados e agradáveis que rodeavam a passagem para a morte.
No mundo de hoje, as nossas
crescentes capacidades de raciocínio e o conhecimento conferido pela ciência
mais não fizeram do que piorar esse sentimento de estranheza. Muitas pessoas já
não acreditam convictamente no conceito de vida depois da morte, e não nos
restam compensações, tendo apenas a realidade desolada com que nos confrontar.
Podemos tentar pôr um ar corajoso, fingir que conseguimos aceitar esta
realidade como adultos, mas não podemos eliminar os nossos medos elementares
tão facilmente como isso. Ao longo de várias centenas de anos desta mudança de
consciência, não é possível transformarmos de um instante para o outro uma das
partes mais profundas da nossa natureza, o medo da morte. Portanto, o que
fazemos em vez de criar sistemas de crença como uma vida depois da morte é
confiar na negação, recalcando o mais possível a consciência da morte.
Fazemo-lo de várias maneiras.
No passado, a morte
era uma presença diária e visceral nas cidades e aldeias, algo a que era
difícil escapar. Em determinada idade, a maior parte das pessoas assistira em
primeira mão às mortes de outros. Hoje, em muitas regiões do mundo, tornámos a
morte de modo geral invisível, algo que acontece apenas em hospitais. (Fizemos
algo semelhante aos animais que comemos.) Podemos passar a maior parte da vida
sem sequer testemunharmos fisicamente o que está a acontecer. Isso confere um
aspeto bastante irreal a algo que faz tão profundamente parte da vida. Esta
irrealidade é intensificada no entretenimento que consumimos, no qual a morte
quase parece algo saído de um cartoon, com dezenas de pessoas a sofrerem fins
violentos sem qualquer emoção associada, exceto excitação perante as imagens no
ecrã. Isto revela quão profunda é a necessidade de reprimir a consciência e de
nos dessensibilizarmos face ao medo.
Além disso, acabámos recentemente
por venerar a juventude, por criar um culto virtual em torno da mesma. Objetos
que envelheceram e filmes do passado lembram-nos inconscientemente da brevidade
da vida e do destino que nos espera. Arranjamos formas de os evitar, de nos
rodear do que é novo, fresco e está na moda. Algumas pessoas até chegam a
alimentar a ideia de que através da tecnologia podemos de alguma forma
ultrapassar a própria morte, o suprassumo da negação humana. Em geral, a
tecnologia dá-nos a sensação de que temos poderes divinos que podem prolongar a
vida e ignorar a realidade por bastante tempo. Neste sentido, não somos mais
fortes do que os nossos antepassados mais primitivos. Encontrámos simplesmente
novas formas de nos desiludir.
Como corolário de tudo isto,
dificilmente encontramos alguém disposto a discutir este tema como uma
realidade pessoal que todos enfrentamos e o modo como podemos lidar com ela de
forma mais saudável. O assunto é simplesmente tabu. Ora, de acordo com uma das
leis da natureza humana, quando vamos demasiado longe na negação, o efeito paradoxal
apodera-se de nós no sentido negativo, tornando a nossa vida mais limitada e
mortal.
Tomamos muito cedo consciência da
nossa mortalidade, durante a infância, e isso enche-nos de uma ansiedade que
não conseguimos recordar, mas que é extremamente presente e visceral. Essa
ansiedade não pode ser afastada ou negada. Reside em nós, enquanto adultos, de
uma forma intensamente latente. Quando decidimos recalcar o pensamento da
morte, a ansiedade torna-se apenas mais forte pelo facto de não confrontarmos a
sua origem. O menor incidente ou incerteza sobre o futuro tenderão a suscitar
esta ansiedade e até a torná-la crónica. Para o combater, tenderemos a limitar
o alcance dos nossos pensamentos e atividades; não saímos das nossas zonas de
conforto naquilo que pensamos e fazemos, pois assim podemos tornar a vida mais
previsível e sentir-nos menos vulneráveis à ansiedade. Certas dependências a
alimentos, estimulantes ou formas de entretenimento terão o mesmo efeito
amortecedor.
Se levarmos este processo suficientemente
longe, ficaremos cada vez mais autocentrados e menos dependentes dos outros,
que muitas vezes suscitam as nossas ansiedades com o seu comportamento
imprevisível.
Podemos descrever o contraste entre
a vida e a morte da seguinte forma: a morte é a imobilidade absoluta, sem
movimento ou mudança, apenas decomposição. Na morte, somos separados dos outros
e ficamos completamente sozinhos. A vida, por sua vez, é movimento, ligação com
outros seres vivos e diversidade de formas de vida. Ao negar e reprimir o
pensamento da morte, alimentamos as nossas ansiedades e tornamo-nos mais
mortais interiormente — afastados das outras pessoas, com um pensamento
habitual e repetitivo, com escasso movimento e mudança, em geral. Por outro
lado, a familiaridade e a proximidade, com a morte, a capacidade de enfrentar a
ideia da mesma, têm o efeito paradoxal de nos fazer sentir mais vivos, como a
história de Flannery O'Connor tão bem ilustra.
Se nos sintonizarmos com a
realidade da morte, sintonizamo-nos mais profundamente com a realidade e com a
plenitude da vida. Ao separar a morte da vida e recalcar a nossa consciência da
primeira, fazemos o contrário.
Do que precisamos no mundo moderno
é de uma forma de criar o efeito paradoxal positivo. De seguida, tentaremos
fazê-lo desenvolvendo uma filosofia prática com vista a transformar a
consciência da própria mortalidade em algo produtivo e que intensifique a vida.
Uma filosofia da vida
através da morte
O problema dos seres humanos é
estarem conscientes da sua mortalidade, mas terem medo de levar esta
consciência mais longe. E como se estivéssemos perto de um grande oceano e nos
impedíssemos de o explorar, chegando a voltar-lhe as costas. O objetivo da
nossa consciência é sempre levá-la o mais longe possível. E essa a fonte do nosso
poder como espécie, aquilo que somos chamados a fazer. A filosofia que adotamos
depende da nossa capacidade de avançar no sentido oposto àquilo que
habitualmente sentimos em relação à morte — olhar para a morte de forma mais
atenta e profunda, abandonar a costa e explorar uma forma diferente de abordar
a vida e a morte, levando este processo o mais longe possível.
As cinco estratégias fundamentais
que se seguem, com exercícios correspondentes, ajudam-nos a consegui-lo. Será
preferível pô-las todas em prática, para que esta filosofia possa penetrar na
sua consciência diária e alterar a nossa experiência de dentro.
Torne a consciência
visceral. Por uma
questão de medo, transformamos a morte numa abstração, num pensamento que
podemos acalentar no presente e depois recalcar. Mas a vida não é um
pensamento; é uma realidade de carne e osso, algo que sentimos interiormente.
Não há vida sem morte. A nossa mortalidade é uma realidade tão palpável como a
vida. Desde o momento em que nascemos, é uma presença dentro do nosso corpo, à
medida que as células morrem e que envelhecemos. Devemos vivê-la desta forma.
Não deveríamos encarar este facto como algo mórbido ou aterrador. Ultrapassar
este bloqueio em que a morte é uma abstração tem um efeito imensamente libertador,
ligando-nos de forma mais física ao mundo que nos rodeia e intensificando-nos
os sentidos.
Em dezembro de 1849, o escritor
Fiódor Dostoiévski, de vinte e sete anos de idade, detido por ter participado
numa alegada conspiração contra o czar da Rússia, foi subitamente transportado
com outros prisioneiros para uma praça em São Petersburgo, tendo-lhes sido dito
que iam ser executados pelos seus crimes. A sua condenação foi totalmente
inesperada. Dostoiévski tinha apenas alguns minutos para se preparar antes de
enfrentar o pelotão de fuzilamento. Nesses escassos minutos, foi assaltado por
emoções que nunca sentira. Reparou nos raios de luz que incidiam na cúpula de
uma catedral e viu que toda a vida era fugaz como esses raios. Tudo lhe pareceu
mais intenso. Reparou nas expressões nos rostos dos outros prisioneiros e detectou o terror por detrás do seu ar corajoso. Foi como se os seus pensamentos
e sentimentos se tivessem tornado transparentes.
No último instante, um
representante do czar apareceu na praça a anunciar que a condenação fora
substituída por vários anos de trabalho forçado na Sibéria. Completamente
assoberbado pelo seu encontro psicológico com a morte, Dostoiévski sentiu-se
renascer. E a experiência ficou enraizada nele para o resto da vida, inspirando
novos níveis de empatia e intensificando as suas capacidades de observação.
Fora a experiência de outros que também haviam sido expostos à morte de uma
forma profunda e pessoal.
O motivo para este efeito pode ser
explicado da forma que se segue. Normalmente, passamos pela vida num estado
muito distraído, quase onírico, com o olhar voltado para dentro. Grande parte
da nossa atividade mental gira em torno de fantasias e ressentimentos
completamente interiores e com escassa ligação à realidade. A proximidade da
morte desperta-nos subitamente a atenção, na medida em que todo o corpo
responde à ameaça. Sentimos um afluxo de adrenalina, com o sangue a bombear de
forma extraordinariamente intensa para o cérebro e através do sistema nervoso.
Este fenómeno deixa a mente concentrada a um nível muito mais elevado e
reparamos em pormenores novos, vemos o rosto das pessoas sob uma nova luz e
sentimos a impermanência de tudo o que nos rodeia, aprofundando as respostas
emocionais. Este efeito pode manter-se durante anos e até décadas.
Não podemos reproduzir esta
experiência sem arriscar a vida, mas podemos obter algum do efeito em doses
moderadas. Devemos começar por meditar na nossa morte e por procurar
transformá-la em algo mais real e físico. Para os guerreiros samurai japoneses,
o centro dos nossos nervos mais sensíveis e a nossa ligação com a vida residia
nas entranhas, nas vísceras; era também esse o centro da ligação com a morte, e
meditavam sobre esta sensação o mais profundamente possível, para criar uma consciência
física da mesma. Mas, para lá das entranhas, também podemos sentir algo
semelhante nos ossos quando estamos cansados. Muitas vezes sentimos a sua
natureza física nos instantes antes de adormecer — por alguns segundos,
sentimo-nos passar de uma forma de consciência a outra, e esse desvio transmite
uma sensação de morte. Não há nada a recear aqui; de facto, ao avançar nessa
direção, faremos grandes progressos na redução da nossa ansiedade crónica.
Podemos igualmente usar a nossa
imaginação, visualizando que o dia da nossa morte chega, onde poderemos estar,
como poderá ocorrer. Devemos torná-lo tão intenso quanto possível. Pode ser
amanhã. Também podemos tentar olhar para o mundo como se estivéssemos a ver as
coisas pela última vez - as pessoas que nos rodeiam, as paisagens e os sons do
dia a dia, o zumbido do trânsito, o som dos pássaros - e depois sentirmo-nos
subitamente devolvidos à vida. Esses mesmos pormenores surgirão agora sob uma
nova luz, não sendo tomados como garantidos ou percepcionados pela metade.
Absorva a impermanência de todas as formas de vida. A estabilidade e a solidez
das coisas que vemos são meras ilusões. Não devemos ter medo dos acessos de
tristeza que decorrem desta percepção. A rigidez das emoções, normalmente muito
ligadas às nossas necessidades e preocupações, estará agora aberta ao mundo e à
acutilância da própria vida, e deveríamos recebê-la de braços abertos. Como o
escritor japonês do século xiv Kenko assinalou: «Se os homens nunca
definhassem, como o orvalho de Adashino, se nunca desaparecessem, como o fumo
sobre Toribeyama, mas permanecessem para sempre no mundo, as coisas perderiam a
capacidade de nos comover! O que de mais precioso existe na vida é a sua
incerteza.
Desperte para a brevidade
da vida.
Quando nos desligamos
inconscientemente da ideia da morte, criamos uma relação especial com o tempo - uma relação que seja mais livre e descontraída. Acabamos por imaginar que
dispomos sempre de mais tempo do que na verdade possuímos. As nossas mentes
derivam para o futuro, onde todas as nossas esperanças e desejos serão
realizados. Se tivermos um plano ou objetivo, teremos dificuldade em
dedicar-nos a ele com grande energia.
Tratamos do assunto amanhã, dizemos
para nós próprios, talvez sejamos tentados no presente a trabalhar noutra meta
ou plano todos parecem muito convidativos e diferentes, por isso como poderemos
comprometer-nos plenamente com um ou com outro? Experimentamos uma ansiedade
generalizada, enquanto sentimos a necessidade de fazer as coisas, mas estamos
sempre a adiar e a dispersar nos nossos esforços.
Então, se nos impuserem um prazo
relativamente a um projeto em particular, essa relação onírica com o tempo
desfaz-se e por algum motivo misterioso descobrimos a concentração para fazer
em dias o que deveria ter demorado semanas ou meses. A mudança que nos é
imposta pelo prazo assume uma componente física: a adrenalina ativa-se,
enchendo-nos de energia e concentrando a mente, tornando-a mais criativa. E
revigorante sentir o compromisso total da mente e do corpo num único objetivo,
algo que raramente experimentamos no mundo de hoje, no estado de distração em
que nos encontramos.
Devemos pensar na nossa mortalidade
como uma espécie de prazo constante, que exerce sobre nós o efeito semelhante
ao anterior, em todas as ações da nossa vida. Temos de parar de nos enganar:
podemos morrer amanhã, e, mesmo que vivamos mais oitenta anos, isso não
representa mais do que uma gota no oceano da vastidão do tempo e passa sempre
mais depressa do que imaginamos. Temos de despertar para esta realidade e
transformá-la numa meditação constante.
Esta meditação pode levar algumas
pessoas a pensar: «Valerá a pena tentar alguma coisa? De que vale tanto
esforço, quando no fim acabamos por morrer? E preferível viver para os prazeres
do momento.» Não se trata, contudo, de uma afirmação realista, mas apenas de
outra forma de evasão. Dedicarmo-nos aos prazeres e distrações significa evitar
pensar nos seus custos e imaginar que podemos enganar a morte sufocando esse
pensamento. Ao dedicarmo-nos aos prazeres, temos sempre de procurar novas
diversões para manter o tédio afastado, algo que se torna esgotante. Devemos
considerar as nossas necessidades e desejos como mais importantes do que tudo o
resto. Com o tempo, começará a parecer algo sem alma, e o nosso ego tornar-se-á
especialmente suscetível se não conseguirmos o que desejamos.
A medida que os anos passam,
tornamo-nos cada vez mais amargos e ressentidos, atormentados pela ideia de que
não realizámos nada e de que desperdiçámos o nosso potencial. Como William
Hazlitt observou: «A nossa aversão pela morte aumenta proporcionalmente com a
consciência de termos vivido em vão.»
Deixe a consciência da brevidade da
vida iluminar as suas ações quotidianas. Temos objetivos a alcançar, projetos a
realizar, relações a melhorar. Poderá ser o nosso último projeto deste tipo, a
nossa última batalha na terra, dadas as incertezas da vida, e devemos
comprometer-nos completamente com aquilo que fazemos. Com esta consciência
permanente, podemos ver o que realmente importa, que questiúnculas mesquinhas e
buscas laterais constituem distrações irritantes. Queremos a sensação de
realização que decorre de realizar coisas. Queremos perder o ego no sentimento
de fluxo em que as nossas mentes se unem com aquilo em que estamos a trabalhar.
Quando nos desviamos do trabalho, os prazeres e distrações que procuramos
ganham ainda mais sentido e intensidade, tendo em conta a sua evanescência.
Encare a mortalidade de
todos os seres humanos. Em 1665,
uma peste terrível grassou por Londres, matando perto de cem mil habitantes. O
escritor Daniel Defoe tinha apenas cinco anos na altura, mas testemunhou esse
fenómeno em primeira mão, o que deixou nele uma impressão duradoura. Cerca de
sessenta anos mais tarde, decidiu recriar os acontecimentos decorridos em
Londres nesse ano pelos olhos de um narrador mais velho, usando as suas
próprias memórias, muita investigação e o diário do tio e escreveu o livro Um
Diário do Ano da Peste.
Enquanto a peste assolava tudo, o
narrador do livro reparou num fenómeno particular: os londrinos tendiam a
sentir níveis de empatia muito superiores pelos seus conterrâneos; as
diferenças normais entre eles, especialmente no que dizia respeito a questões
religiosas, desapareceram. «Podemos observar aqui», escreve, «que uma visão
próxima da morte reconciliaria rapidamente homens de bons princípios, uns com
os outros, e que é fundamentalmente devido à nossa situação fácil na vida, e ao
facto de afastarmos estas coisas, que se fomentam as divisões entre seres
humanos, que o mau sangue continua. [...] Mais um ano de peste reconciliaria
estas diferenças, um diálogo íntimo com a morte ou com doenças que ameaçam de
morte purgaria a bílis dos nossos temperamentos, eliminaria as animosidades
entre nós e levar-nos-ia a ver com olhos diferentes.»
Existem muitos exemplos do que
parece ser precisamente o contrário seres humanos a chacinarem milhares de
outros seres humanos, muitas vezes em guerras, sem que a visão dessas mortes em
massa estimule a menor noção de empatia. Mas, nestes casos, os carniceiros
sentem-se diferentes daqueles que matam, que acabaram por encarar como menos do
que humanos e sob o seu domínio. Com a peste, ninguém é poupado,
independentemente do seu estado de saúde ou do seu estatuto na vida. Todos
enfrentam o mesmo risco. Sentindo-se eles próprios vulneráveis e considerando a
vulnerabilidade de todos os outros seres humanos, o sentido normal de diferença
e privilégio das pessoas dissipa-se e surge uma invulgar empatia generalizada.
Poderia ser um estado de espírito normal, se conseguíssemos visualizar a
vulnerabilidade e a mortalidade dos outros sem a separarmos da nossa.
Com a nossa filosofia, queremos
produzir o efeito purificador que a peste tem nas nossas tendências tribais e
egocentrismo habitual. Comece em Pequena escala, olhando primeiro para quem nos
rodeia, em casa e no local de trabalho, vendo e imaginando as suas mortes e
notando como isso pode alterar subitamente a percepção que temos delas. Como
Schopenhauer escreveu: «A dor profunda que se sente com a morte de cada alma
amiga provém do sentimento de que existe algo em cada indivíduo que é
inexpressável, único apenas nessa pessoa, e que fica, portanto, perdido de
forma absoluta e inextricável.» Queremos considerar a singularidade da outra
pessoa no presente, destacando as qualidades que tomamos por garantidas.
Queremos sentir a sua vulnerabilidade face à dor e à morte, não apenas a nossa.
Podemos levar esta meditação mais
longe. Observe os transeuntes numa cidade movimentada e pense que, daqui a
noventa anos, é provável que nenhum deles esteja vivo, incluindo nós próprios.
Pense nos milhões e milhões que já nasceram e desapareceram, enterrados e há
muito esquecidos, tanto ricos como pobres. Esses pensamentos tornam mais
difícil manter a ideia de que somos muito importantes, o sentimento de que
somos especiais e de que a dor que podemos sentir não é a mesma que a dos
outros.
Quanto mais criarmos esta ligação
visceral com as pessoas através da nossa mortalidade comum, melhor lidaremos
com a natureza humana em todas as suas variedades, com tolerância e graça. Isto
não significa que percamos a vigilância face a quem é perigoso e difícil. De
facto, ver a mortalidade e a vulnerabilidade até no indivíduo mais maldoso pode
ajudar-nos a reduzi-los à sua verdadeira dimensão e lidar com eles a partir de
um espaço mais neutro e estratégico, não levando a sua perversidade para o
campo pessoal.
De modo geral, podemos dizer que o
espectro da morte é o que nos conduz aos outros seres humanos e nos torna
sedentos de amor. A morte e o amor estão inextricavelmente interligados. A
separação e desintegração derradeiras representadas pela morte levam-nos a
unirmo-nos e a integrarmo-nos com os outros. A consciência única da morte criou
a nossa forma particular de amor. E através de um aprofundamento da consciência
da morte iremos apenas reforçar este impulso e livrar-nos das divisões e cisões
infrutíferas que atormentam a humanidade.
Aceite toda a dor e
adversidade. A vida,
pela sua própria natureza, implica dor e sofrimento. E a sua derradeira forma é
a própria morte. Perante esta realidade, os seres humanos têm uma opção
simples: podem tentar evitar os momentos dolorosos e abafar o seu efeito
distraindo-se, tomando drogas ou envolvendo-se em comportamentos aditivos.
Também podem limitar o que fazem — se não nos esforçarmos muito no trabalho, se
reduzirmos as nossas ambições, não nos exporemos ao fracasso e ao ridículo. Se
não cortarmos logo com as relações, podemos evitar os momentos duros e
dolorosos da separação.
Na origem desta abordagem está o
próprio medo da morte, que define a nossa relação elementar com a dor e com a
diversidade, uma forma de evitamento que se torna o nosso padrão. Quando
acontecem coisas más, a nossa reação natural é queixarmo-nos do que a vida nos
trouxe ou do que os outros não estão a fazer por nós e fugir ainda mais de
situações desafiantes. O efeito paradoxal negativo da morte apodera-se de nós.
A outra opção disponível é
comprometermo-nos com aquilo a que Friedrich Nietzsche chamou amor fati («amor
pelo destino»): «A minha fórmula para a grandeza num ser humano é o amor fati:
não queremos que nada seja mais do que é, não no futuro, não no passado, não
por toda a eternidade. Não só para suportar o facto de que acontece por
necessidade, mas para o amar.»
O que isto significa é o seguinte:
existe muito na vida que não conseguimos controlar, e a morte é o melhor
exemplo. Conhecemos doenças e dor física. Passamos por separações de pessoas.
Enfrentamos fracassos devidos aos nossos próprios erros e à malevolência
pérfida dos outros seres humanos. E a nossa missão consiste em aceitar estes
momentos e até acalentá-los, não pela dor, mas pelas oportunidades de aprender
e nos fortalecermos. Ao fazê-lo, afirmamos a própria vida, aceitando todas as
suas possibilidades. E, no centro de tudo isto, está a aceitação total da
morte.
Poremos este processo em prática
vendo sempre os acontecimentos como fatídicos tudo acontece por um motivo e
cabe-nos a nós retirar a lição. Quando ficarmos doentes, veremos esses momentos
como oportunidades perfeitas de nos afastarmos do mundo e de fugir das duas
distrações, de abrandar, de reavaliar o que estamos a fazer e de apreciar os
períodos muito mais frequentes de boa saúde. Sermos capazes de nos habituar a
um certo nível de dor física sem procurar imediatamente algo que a amorteça é
uma competência a cultivar na vida.
Quando as pessoas resistem à nossa
vontade ou se viram contra nós, tentaremos aferir o que fizemos mal, para
compreender melhor a natureza humana e nos treinarmos a lidar com aquelas que
são escorregadias e desagradáveis. Quando corrermos riscos e falharmos,
aceitaremos a oportunidade de aprender com a experiência. Quando as relações
falharem, tentaremos ver o que correu mal na dinâmica, o que nos faltou e o que
pretendemos da relação seguinte. Não nos escudaremos de sofrimentos futuros
evitando essas experiências.
Em todos estes casos, iremos
certamente experimentar dor física e mental e não nos podemos iludir pensando
que é a filosofia que transforma imediatamente o negativo em positivo. Sabemos
que é um processo e que devemos tentar aceitar os golpes, mas que, à medida que
o tempo passa, as nossas mentes irão trabalhar transformando-o isto numa
experiência de aprendizagem. Na prática, tornar-se-á mais fácil e mais rápido
realizar essa conversão.
Este amor pelo destino tem a
capacidade e o poder de alterar tudo o que vivemos e de iluminar os fardos que
transportamos. Porquê queixarmo-nos disto ou daquilo, se de facto virmos esses
acontecimentos ocorrerem por um motivo e, em última análise, esclarecer-nos?
Porque sentimos inveja do que os outros têm, quando possuímos algo muito maior
— a abordagem derradeira às realidades mais duras da existência?
Abra a mente ao Sublime. Pense na morte como uma espécie de
limiar que temos de transpor. Como tal, representa o derradeiro mistério. Não
podemos encontrar as palavras ou conceitos para expressar o que é. Enfrentamos
algo verdadeiramente impossível de conhecer. Não há ciência, tecnologia ou
especialistas que possam resolver este enigma e verbalizá-lo. Os seres humanos
podem enganar-se pensando que sabem praticamente tudo, mas neste limiar
acabamos por nos sentir entorpecidos e tateantes.
Este confronto com algo que não
podemos conhecer ou verbalizar é aquilo a que iremos chamar o Sublime, cujo
radical latino significa «até ao limiar». O Sublime é tudo o que excede a nossa
capacidade de apreender palavras ou conceitos por serem demasiado latos,
demasiado vastos, demasiado obscuros e misteriosos. E, quando encaramos estas
coisas, sentimos um pouco de medo, mas também espanto e maravilha. Somos
recordados da nossa insignificância, do que é muito mais vasto e poderoso do
que a nossa vontade débil. Sentir o Sublime constitui o antídoto perfeito para
a sua satisfação e para as preocupações da vida diária que nos consomem e nos
fazem sentir bastante vazios.
O modelo para sentir o Sublime
decorre da meditação sobre a mortalidade, mas podemos treinar a mente para o
experimentar através de outros pensamentos e ações. Por exemplo, quando olhamos
para o céu, à noite, podemos deixar a mente tentar sondar a infinitude do
espaço e a esmagadora pequenez do nosso planeta, perdido no meio de toda a
escuridão. Podemos encontrar o Sublime pensando sobre a origem da vida na
Terra, como há muitos biliões de anos isso aconteceu, talvez num momento
particular, e quão singular foi, tendo em conta os milhares de fatores que
tiveram de convergir para que a experiência da vida começasse neste planeta.
Essas quantidades de tempo e a verdadeira origem da vida excederam a nossa
capacidade de as conceptualizar, ficando-nos apenas uma sensação do Sublime.
Podemos levar esta ideia mais
longe. Há vários milhões de anos, a experiência humana começou quando nos
desligámos dos nossos antepassados primatas, formando um ramo especial. Mas
devido à nossa débil natureza física e ao número reduzido de elementos do
género humano, enfrentávamos uma ameaça permanente de extinção. Se esse
acontecimento mais do que provável tivesse acontecido- como aconteceu com
tantas espécies, incluindo outras variedades de seres humanos -, o mundo teria
conhecido um destino muito diferente. De facto, até a união dos nossos próprios
pais e o nosso nascimento dependeram de uma série de encontros fortuitos que
foram igualmente improváveis. Isto levou-nos a encarar a existência presente
como individual, algo que tomamos como garantido, como uma ocorrência muito
improvável, tendo em conta todos os elementos fortuitos que tiveram de se
alinhar.
Podemos experimentar o Sublime
contemplando outras formas de vida. Temos a nossa própria crença do que é real
com base no nosso sistema nervoso e perceptivo, mas a realidade dos morcegos,
que captam a realidade através de ecolocalização, é de tipo muito diferente.
Sentem as coisas de uma forma que excede o nosso sistema perceptual. Que outros
elementos não conseguimos captar, quais as outras realidades invisíveis para
nós? (As últimas descobertas em muitos ramos da ciência terão este efeito de
consciencialização, e ler artigos numa revista científica popular produzirá de modo
geral alguns pensamentos sublimes.)
Também nos podemos deslocar até
regiões do planeta em que todos os pontos normais da bússola sejam baralhados -
uma cultura muito diferente ou determinadas paisagens em que o elemento humano
pareça especialmente insignificante, como mar aberto, uma grande extensão de
neve ou uma montanha particularmente elevada. Confrontados fisicamente com o
que nos faz parecer pequenos, seremos obrigados a reverter a percepção normal,
em que somos o centro e a medida de tudo.
Perante o Sublime, sentimos um
arrepio, uma antecipação da própria morte, algo demasiado vasto para ser
abarcado pela mente humana. E, por um momento, isso arranca-nos à presunção
costumeira e liberta-nos do domínio mortal do hábito e da banalidade.
Em última instância,
pense nesta filosofia nestes termos: desde o
início da consciência humana, a ideia de morte aterrorizou-nos, Este terror
moldou as nossas crenças, religiões, instituições e muito do nosso
comportamento de formas que não conseguimos divisar ou compreender. Os seres
humanos tornaram-se escravos dos seus medos e das suas evasões.
Quando revertermos esta situação,
tornando-nos mais conscientes da nossa mortalidade, experimentaremos o sabor da
verdadeira liberdade. Já não sentiremos a necessidade de limitar o que pensamos
e fazemos, de modo a tornar a vida previsível. Poderemos ser mais ousados, sem
medo das consequências. Poderemos libertar-nos de todas as ilusões e
dependências a que recorremos para adormecer a ansiedade. Poderemos empenhar-nos
plenamente no trabalho, nos relacionamentos, em todas as ações. E, quando
experimentarmos alguma desta liberdade, iremos desejar explorar mais e alargar
as nossas possibilidades enquanto o tempo humano o permitir.
“Vamos libertar a morte da sua estranheza,
conhecê-la, habituar-nos a ela. Vamos deixar na mente apenas a morte. Em cada
momento, imaginemo-la na nossa imaginação, em todos os aspetos.
Não se sabe onde a morte nos
espera; vamos aguardá-la por toda a parte. A premeditação da morte é a premeditação
da liberdade.
..J Quem tiver aprendido a morrer terá
desaprendido ser escravo. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e
constrangimento.”
—Michel de Montaigne
